Venda da flor, iniciativa da escritora Veva de Lima a favor das vítimas da I Grande Guerra, Joshua Benoliel, 1873-1932 © Arquivo Municipal de Lisboa (Cota: JBN000834)

Um Bairro com História | Maria Calado

Antigos conventos reutilizados como lugares de arte e de cultura, igrejas, museus, palácios, teatros, cafés são marcos de um percurso feito ao longo de muitos séculos. Aqui, descobrir o presente, passa sempre por conhecer o passado.

O território do atual Chiado tem uma história de ocupação humana muito antiga. Aprazível e bem implantado, numa encosta solarenga virada para o estuário do Tejo, para o Vale da Baixa e para a encosta do Castelo, este cenário qualificado foi, desde épocas remotas, lugar de exploração agrícola, onde se vieram instalar algumas residências de veraneio da cidade romana de Olisipo. Assim, durante os primeiros séculos da nossa era, intensificou-se a ocupação do espaço, sob a forma de vilas rústicas. Durante a Alta Idade Média, entre os séculos VIII e XII, olivais e vinhedos cresciam nesta encosta dos arredores da cidade muçulmana. Em 1147, aqui acamparam os cruzados que auxiliaram o rei D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa aos mouros.

Com a integração da cidade no reino de Portugal, a vasta extensão rural dos arrabaldes ocidentais de Lisboa veio a formar a paróquia de Nossa Senhora dos Mártires, criada no século XII. A sede era a igreja do mesmo nome, localizada no alto do Monte Fragoso, sítio que veio a designar-se, posteriormente, colina de S. Francisco. A partir do século XIII, por aqui se foram implantando os núcleos conventuais das novas ordens monásticas mendicantes, ligadas ao ressurgimento da cidade e à interpretação espacial e construtiva do gótico. Os conventos foram agregadores e dinamizadores da estrutura urbana: Convento de S. Francisco (1217), Convento da Trindade (1283), Convento do Carmo (1389) e Convento do Espírito Santo da Congregação de S. Filipe de Nery (1671).

Junto dos conventos, da igreja paroquial e dos primeiros palácios, e ao longo dos caminhos de acesso e dos percursos divisórios das propriedades, fixaram-se os núcleos populacionais com casario tradicional. Foram unificados e integrados no tecido da cidade consolidada pelo perímetro da nova muralha, a cerca fernandina, construída entre 1373 e 1375, para proteger a urbe, que tinha crescido substancialmente na zona ocidental. A configuração das muralhas delimitou a zona e articulou a organização do espaço interior com a envolvente externa. Deste modo, o sítio dos Mártires, na vizinhança do Convento de S. Francisco, urbanizou-se e acompanhou a nova fase da história de Lisboa, cidade capital de Portugal que, desde meados do século XIII, se começava a afirmar como grande centro portuário e entreposto atlântico, virado para a exploração dos mares, a descoberta de novos continentes e o abastecimento da Europa.

Neste contexto, o núcleo urbano da freguesia foi ganhando uma ambiência própria, ligada à coexistência de funções residenciais com a emergência de actividades decorrentes da condição de interface entre diferentes áreas urbanas e entre o centro e os arrabaldes. Os residentes eram tanto as comunidades monásticas como os trabalhadores necessários ao funcionamento da vida conventual e às atividades produtivas destas instituições, nomeadamente em tudo o que se relacionava com a exploração agrícola. Beneficiando das boas condições geográficas e da proximidade das igrejas e dos conventos, em 1290, instalou-se um pequeno polo habitacional, na envolvente da Irmandade do Espírito Santo (Sítio da Pedreira), próximo da atual Calçada do Sacramento, formado pelas Casas da Universidade, destinadas a residência dos mestres.

Foi a definição da principal via de acesso às portas da muralha, a Rua Direita, génese da atual Rua Garrett, que introduziu a organização da morfologia urbana e estabeleceu uma hierarquia de espaços dentro do conjunto. Esta parte da cidade desenvolveu-se com base num traçado medieval de tipo ordenado que, mesmo depois de posteriores transformações, nos séculos XVIII e XIX, ainda é percetível na matriz da estrutura urbana atual. Ao abrigo da muralha, formaram-se as ruas interiores, bem protegidas. A Rua Direita das Portas de Santa Catarina estruturou a malha urbana, formada por dois conjuntos, que se organizaram respetivamente a norte e a sul do eixo principal. Funcionalmente, esta via articulava o núcleo de São Francisco, em torno do convento de frades mendicantes e da igreja paroquial, com a zona alta do Carmo e da Trindade. O núcleo mais antigo era constituído pelas ruas limítrofes da cerca do convento franciscano e a malha mais recente, a norte, era formada pelas vias de penetração na encosta, entre as propriedades conventuais do Carmo e da Trindade.

Pela natureza do edificado, representatividade e funções urbanas, o conjunto construído a partir do convento de São Francisco era um espaço de referência visual com destacada importância na Cidade, que crescera em torno do complexo conventual. Este conjunto, representativo do primeiro Gótico mendicante, era formado pela igreja e pelas dependências conventuais construídas em volta do claustro. Faziam parte da propriedade os terrenos e os equipamentos agrícolas. No início do século XVI, por iniciativa do rei D. Manuel I, recebeu grandes obras, que lhe imprimiram a fisionomia monumental e artística de grande complexo arquitetónico gótico-manuelino. A nova igreja conventual, com fachada manuelina virada a nascente, impunha-se, cenograficamente, sobre a cidade. Pela sua imagem e relevância, este núcleo conventual com os seus olivais, muros e respetiva envolvente foram, muitas vezes, designados “Cidade de São Francisco”. Os limites da cerca conventual dos frades configuravam já a base da estrutura urbana atual. A toponímia quinhentista identificava, também, algumas das principais vias e espaços públicos, nomeadamente, a Rua de São Francisco (atual Rua Ivens), a Rua do Saco (atual Rua Victor Cordon), a Rua da Paredinha (atual Rua Capelo) e a Rua das Portas de Santa Catarina (atual Rua Garrett).

A Norte da rua das Portas de Santa Catarina, ao longo da encosta solarenga, os percursos eram definidos por caminhos vicinais, delineados entre a frente urbana do convento do Carmo e a cerca do convento da Trindade. Nestas vias de enquadramento rural, foram surgindo, pontualmente, pequenas construções de carácter vernáculo, em contraste com a ocupação sequencial e de fisionomia urbana nas frentes da rua Direita. No início do século XV, junto do convento do Carmo, surgiu uma pequena urbanização, organizada em lotes regulares, que ficou conhecida por Bairro do Olival. Esta intervenção foi decisiva a nível local e transformou-se num facto urbano de relevo, já que constituiu a primeira aplicação que deu início a um novo modo de pensar e fazer a cidade, através de planificação em lotes com medidas tipo, situação que ainda hoje é possível perceber na conformação urbana.

As Portas de Santa Catarina eram um marco arquitetónico e um limite da Lisboa ocidental. A Rua Direita de Santa Catarina, muitas vezes identificada, simplesmente, como Rua Direita, alargava-se no troço final, gerando um espaço de funcionalidade e acessibilidade, cuja forma ainda hoje se pode reconhecer no Largo das Duas Igrejas. No exterior, para lá das portas da cidade, emergiam as vias de saída. Para ocidente, em direção ao Alto de Santa Catarina e à Calçada do Combro, partia um caminho que atravessava o vale de São Bento e continuava até Alcântara e Belém. No mesmo local de saída das portas, cruzava outro caminho com orientação Norte/Sul que, ao longo da muralha, ligava o Tejo e os estaleiros da zona ribeirinha com os arrabaldes rurais, localizados mais a norte, formando o percurso que está na base das atuais ruas do Alecrim e da Misericórdia.

Com a urbanização da Vila Nova de Andrade, no exterior da muralha, em 1513 e com a ocupação sistemática da Calçada do Combro até ao vale de São Bento, e do Pico de Belver (Chagas e Santa Catarina) até à zona ribeirinha do Bairro da Boa Vista, introduziu-se uma nova dinâmica no desenvolvimento espacial e social de Lisboa. No século XVI, o futuro Bairro Alto nasceu já com condição de urbanidade moderna. Ganhou projeção com a instalação da Igreja e Colégio dos Jesuítas, em 1553, no sítio da antiga ermida de São Roque e engrandeceu-se com a construção de elegantes palácios. A par da nobreza, numerosos moradores, recém-chegados à capital para trabalhar no comércio, na construção de barcos e na faina das descobertas marítimas, vieram residir nesta parte alta da cidade, que também acolhera muitos lisboetas vindos dos bairros mais antigos, a seguir aos terramotos quinhentistas de 1531, 1551 e 1597. A fisionomia da cidade medieval alterava-se em função da atividade marítima e da atratividade ligada ao comércio internacional. O Chiado ganhou novos horizontes, a partir da mudança que a urbanização do Bairro Alto criou.

Com o crescimento demográfico e a expansão urbana, a muralha deixou de ter as tradicionais funções defensivas e de limite da cidade consolidada e uma parte do território ocidental e seus moradores passou a fazer parte das novas freguesias entretanto criadas: São Paulo (1412), Santa Catarina (cerca de1559), Sacramento (1671), Encarnação (1697). A vetusta freguesia de Nossa Senhora dos Mártires, acolheu também a sede da nova paróquia do Loreto. Instituída em 1518, esta abrangia os estrangeiros de nacionalidade italiana residentes em Lisboa e, a partir de 1521, passou a ter igreja própria às Portas de Santa Catarina. Para além da paróquia do Loreto, que compreendia os italianos dispersos pela cidade e não tinha território consignado, a organização administrativa do território correspondente ao Chiado centralizava-se em três paróquias, definidas do seguinte modo: a dos Mártires englobava genericamente a envolvente sul da Rua das Portas de Santa Catarina e confinava com as paróquias de São Nicolau e São Paulo; a do Sacramento, abrangia a envolvente norte sobre a encosta; e a da Encarnação incluía todo o conjunto exterior às muralhas (Bairro Alto) até ao limite de São Paulo, das Mercês e de Santa Catarina, que tiveram estatuto paroquial, respetivamente, em 1412, 1559 e 1632.

A primeira fase da história do Chiado corresponde ao longo período temporal que vai das origens até ao terramoto de 1755 e tem um perfil urbano marcadamente medieval e uma ambiência cultural de cariz medievo-renascentista. A partir do século XV, com a dinâmica de mudança que se traduzia no crescimento da cidade, o sítio urbano da freguesia dos Mártires reforçou a sua identidade e a vocação de centralidade. Para além da rua principal, o adro paroquial e os largos conventuais eram os espaços públicos de sociabilidade e vivência comum. A coabitação de diferentes funções (habitação, comércio, equipamentos conventuais) muito contribuiu para criar uma ambiência de certo cosmopolitismo, que haveria de fazer parte integrante da imagem do Chiado. O acesso direto aos estaleiros da zona ribeirinha estava garantido e a ligação à Baixa fazia-se através do Rossio, ao longo de um percurso difícil e acidentado, pela Rua do Carmo, Caracol do Carmo e Calçada de Paio de Novais. Com abertura da Rua Nova do Almada, em 1665 e a implantação do Convento da Boa Hora, no século XVII, formou-se um novo polo urbano e facilitou-se o percurso de ligação à Baixa ribeirinha e ao Terreiro do Paço.

A estrutura urbana pré-pombalina do bairro caracteriza-se, assim, por uma ocupação conventual que se traduziu na formação de grandes unidades espaciais (delimitadas pelas cercas com os respetivos complexos arquitetónicos) e pela penetração de uma estruturante Rua Direita principal para a qual convergiram as transversais de ligação, com base num modelo ordenado característico de certas tipologias urbanas das cidades portuguesas do final da Idade Média. No conjunto edificado, destacavam-se as construções religiosas: os conventos de São Francisco (séc. XIII), Trindade (séc. XIII), Carmo (séc. XIV) Espírito Santo e Boa – Hora (séc. XVII) e as igrejas paroquiais dos Mártires (séc. XII), do Sacramento (séc. XVII), e da Encarnação (séc. XVII) e ainda a igreja do Loreto, propriedade da comunidade italiana desde o século XVI. No domínio da arquitetura civil, predominavam os edifícios correntes, pontuados por alguns palácios e residências aristocratas, de maior dimensão e clara erudição.

Neste quadro de referências, que caracterizam um território urbano com grande dinamismo, a população aumentou significativamente e verificaram-se alterações na organização administrativa da cidade e no espaço público, com consequências previsíveis já no século XVII. As freguesias seiscentistas de Santa Catarina e da Encarnação, passaram a integrar, predominantemente, território exterior à antiga muralha, abrangendo uma parte substancial do Bairro Alto e deixando a freguesia dos Mártires com uma configuração muito próxima daquela que hoje tem. A imagem desta área da cidade alterou-se, também, devido à demolição total das Portas de Santa Catarina durante a primeira metade do século XVIII e à incorporação de partes da muralha no tecido edificado mais recente, eliminando a presença visual de elementos funcionais e simbólicos do urbanismo medieval e ultrapassando o conceito de cidade fortificada e bem delimitada. Depois da destruição da torre norte, em 1577, e da torre sul, em 1698, a ligação com a envolvente ocidental tornou-se mais clara e direta com a demolição total das Portas no início do século XVIII, proporcionando uma progressiva articulação de cenários construídos e de funções e uma maior continuidade e clareza de percursos urbanos.

A identificação toponímica de Chiado foi vulgarizada desde o século XVII, aplicando-se ao troço inicial da rua das Portas de Santa Catarina, onde se concentravam espaços públicos com funções de sociabilidade urbana. Sem registo documental provado, nem consenso absoluto por parte de investigadores e olisipógrafos, a designação Chiado foi aplicada para identificar uma parte da cidade com características próprias de bairro. Para alguns investigadores, Chiado era o nome do proprietário de um botequim, característica taberna lisboeta, onde afluíam figuras populares ligadas à emergente boémia da capital. Para outros, radica no nome do poeta popular quinhentista, António Ribeiro Chiado.

Outras interpretações argumentam a possível relação com o caraterístico ruído (chiado) dos transportes sobre a calçada desta rua inclinada. Em qualquer das versões, a conotação é cultural, aberta e criativa, e tem uma identidade própria ligada a uma realidade urbana particular e a uma vivência específica no ambiente cultural e social da cidade.

Certo é que as transformações posteriores ao período quinhentista, vinham alterando o perfil económico e modificando a vida local, pela introdução preferencial de actividades ligadas ao comércio, ao convívio e à cultura, em substituição da tradicional expressão rural de cariz medieval. Tal como nas grandes cidades da Europa, a cultura urbana pré-industrial ganhava as suas raízes e o espírito das luzes começava a pairar no horizonte. Aqui se fixaram as primeiras confeitarias, chapelarias e livrarias e se formaram os primeiros clubes. Exemplo referencial é a Livraria Bertrand, com origem numa loja aberta em 1732 por livreiros franceses na Rua Direita do Loreto e instalada em 1773 no sítio que ainda hoje ocupa, no coração da principal artéria do Chiado.

Em Lisboa, a expressão urbana da festa religiosa barroca foi, desde o período seiscentista, a base de uma transformação mais profunda, que beneficiou de um ambiente particularmente favorável a partir do período joanino no século XVIII e do esforço de internacionalização a ele ligado. O Chiado foi cenário de eventos festivos, onde religioso e profano se ligavam. Era ponto essencial de passagem, na partida e no regresso para a igreja de São Roque, anexa ao Colégio da Companhia de Jesus, onde pairava o espírito da Contra-Reforma e os princípios definidos pelo Concílio de Trento. Aqui se celebravam os eventos mais importantes e representativos da hierarquia social e da religiosidade, com a participação da aristocracia e do povo e sempre com a presença do rei e da corte. Por isso, o Chiado era o teatro da vida social, um espaço de representação dos poderes e estilos de vida na cidade capital do reino. Deste modo, a dimensão cosmopolita acabaria por dar sentido ao nome Chiado, que, para além de bairro de Lisboa, se tornou um lugar referencial a nível nacional e internacional. Nos relatos de viagem dos estrangeiros e na correspondência dos diplomatas que visitaram ou residiram em Lisboa, o Chiado é referido pelo seu carácter de centralidade cultural e social. Aqui se localizavam igrejas, conventos, residências emblemáticas e propriedades da nobreza, nomeadamente as que pertenciam aos Duques de Bragança, que assumiram o trono a partir de 1640.

O terramoto de 1755 provocou grande ruína em toda a zona. A reconstrução pombalina da cidade, dirigida pelo engenheiro militar Manuel da Maia, veio a incorporar o Chiado e a sua envolvente no Plano da Baixa, concebido por Eugénio dos Santos, Carlos Mardel e Elias Sebastião Pope. Data desta época a reorganização da estrutura funcional e da malha urbana atual, sem perder a memória das pré-existências. A rua das Portas de Santa Catarina foi regularizada, através do alargamento, do nivelamento dos edifícios e do alinhamento das fachadas, com base nos modelos-tipo do urbanismo e da arquitetura pombalinos. A urbanização de parte dos terrenos do Convento de São Francisco permitiu o ordenamento do traçado das ruas transversais, agora integradas num esquema geométrico regular que se articulava com a nova tipologia de quarteirão. Também a Rua Nova do Almada foi regularizada e continuada com uma nova ligação ao Rossio, através de uma via aberta na base do grande aterro, conhecido por “muralha do Carmo”. A Rua Nova do Carmo, hoje simplesmente Rua do Carmo, prolongava a Rua Nova do Almada, no sentido descendente. Os espaços tradicionais – Largo de São Francisco, Largo do Loreto (atual Largo do Chiado) e Largo do Carmo foram urbanizados, regularizados e ordenados por fachadas que definiam conjuntos uniformes com uma nova escala arquitetónica e urbanística.

No final do século XVIII, a matriz espacial moderna, organizada em quarteirões, ficou estabelecida nas suas linhas principais. A freguesia dos Mártires, com uma população residente estimada em cerca de 8.000 habitantes, distribuídos por 1800 fogos, ocupava uma parte substancial do Chiado, que recebeu iluminação pública com lamparinas de azeite, em 1780. A sede da paróquia dos Mártires foi transferida para uma nova igreja que se construiu com fachada virada para a Rua das Portas de Santa Catarina, passando a constituir um dos principais elementos de referência do cenário urbano, tal como as fachadas reconstruídas das igrejas da Encarnação, Loreto e Sacramento. A igreja dos Mártires, desenhada pelo arquiteto Reinaldo Manuel dos Santos e inaugurada em 1784, era frequentada pela aristocracia lisboeta e por visitantes estrangeiros, transformando-se num dos mais prestigiados locais de culto em Lisboa.  Ao mesmo tempo, construíam-se novos palácios, com uma linguagem arquitetónica classicizante de inspiração francesa e uma fisionomia cada vez mais urbana, com destaque para o Palácio Ferreira Pinto e o Palácio Quintela Farrobo, erguiam-se prédios de rendimento de tipologia pombalina e instalavam-se equipamentos públicos como o Chafariz do Loreto (1771-1780). Neste processo de transformação e engrandecimento, o Teatro São Carlos tornou-se um símbolo da nova burguesia lisboeta, sintonizada com a cultura do Iluminismo e o gosto artístico do Neoclassicismo. Inspirado em modelos internacionais, foi projetado pelo jovem arquiteto José da Costa e Silva que se deslocou propositadamente a Itália, onde colheu inspiração no Teatro São Carlos de Nápoles e no Teatro alla Scala de Milão. A inauguração do edifício, em 30 de junho de 1793, introduziu um polo de animação urbana, acentuando a dinâmica social e cultural que se vinha esboçando já desde o período pré-pombalino.

Com o advento da cultura romântica e do Liberalismo oitocentista, o carácter aristocrata, intelectual e boémio enraizou-se profundamente, marcando definitivamente o perfil do Chiado. A transformação mais profunda deu-se a partir de 1834, com a extinção das ordens religiosas e a expropriação dos conventos, que deram origem a espaços urbanizados, onde se ergueram prédios de habitação. As velhas dependências conventuais foram reutilizadas com novas funções. O convento do Espírito Santo, depois de adquirido pelo Barão de Barcelinhos, foi residência até se transformar nos Armazéns do Chiado, enquanto o Convento de São Francisco acolheu a Biblioteca Pública e a Academia de Belas Artes, trazendo para o Chiado uma nova centralidade cultural ligada ao ensino artístico. Este é o início do período áureo dos teatros, dos cafés e cervejarias, dos clubes, dos grandes armazéns, das livrarias. Foram exemplos pioneiros o café Marrare, que abriu em 1820 e a casa José Alexandre, que se instalou como armazém de ferragens em 1833, a que se seguiram, entre outros, a Pastelaria Ferrari em 1846, a Casa Havaneza em 1865, o Grémio Literário em 1875, a Joalharia Leitão em 1877, a Casa Ramiro Leão em 1888, os Armazéns Eduardo Martins em 1889.

As condições de acessibilidade no contexto global da cidade, que ampliara em muito o seu perímetro e estava em fase de expansão urbanística – a sul com a frente portuária e a norte com o Plano das Avenidas Novas – foram melhoradas pela construção dos elevadores concebidos e instalados pelo engenheiro portuense Raoul Mesnier du Ponsard. O elevador do Chiado, em 1892, o do Largo da Biblioteca, em 1897 e o do Carmo ou Santa Justa, em 1902 permitiram ligações rápidas com o Rossio, a Baixa e a Praça do Comércio, introduzindo os sinais da arquitetura do ferro e da industrialização que a Regeneração oitocentista fomentou. A reorganização de espaços urbanos tradicionais e o seu embelezamento com intervenções escultóricas foi bem visível, particularmente no Largo de Camões, onde em 1867 se inaugurou o monumento ao poeta, da autoria de Vítor Bastos, após a demolição do arruinado Palácio do Marquês de Marialva e dos casebres do Loreto. No Largo da Biblioteca (atual Largo da Academia Nacional de Belas Artes), foi colocado, em 1904, o busto do benemérito e grande mecenas da cultura, o Visconde de Valmor e, em 1905, o Largo Barão de Quintela foi o local escolhido para a estátua evocativa do escritor Eça de Queiroz, concebida por Teixeira Lopes.

No século XIX, o quarteirão delimitado pelo Largo do Picadeiro, Travessa dos Teatros, Rua António Maria Cardoso ficou consolidado, tanto no que se refere à organização fundiária e cadastral, como no que reporta à morfologia urbana e à arquitetura. No espaço de enquadramento urbano deste conjunto edificado, onde se localiza hoje a sede do Centro Nacional de Cultura, o fim de século foi decisivo para a vida do Chiado. A inauguração do Teatro Rainha Dona Amélia (atual Teatro São Luiz), em 1894, concebido por Luis Reynaud e decorado pelo cenógrafo Luigi Manini, mas reconstruído em 1914, já como Teatro da República e projeto do arquiteto Tertuliano de Lacerda Marques, trouxe um novo equipamento cultural ao Chiado. Vocacionado essencialmente para o Teatro, em 1928 lançou também uma regular programação de cinema, inaugurada com o filme Metropolís de Fritz Lang e em 1930 aderiu ao cinema sonoro.

Durante a primeira metade do século XX, juntamente com os teatros de São Carlos e da Trindade e, mais tarde, com o Cinema Chiado Terrasse, concentrava-se neste bairro uma complementaridade de espaços cénicos que permitia uma enorme diversidade de tipos de espetáculos e de afluência de públicos. Com exceção do Chiado Terrasse, destituído da sua antiga vocação e refuncionalizado como espaço de serviços, esta rede de equipamentos tem-se mantido e revigorado, dando ao Chiado um carácter próprio no que se refere às artes cénicas e performativas. O Teatro São Luíz, depois de adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa em 1971, veio a acolher o Teatro Estúdio Mário Viegas nos anos noventa e, a partir de 1998, o edifício beneficiou de grandes obras de restauro e modernização, com base no programa definido pelo arquiteto Silva Dias e com projeto de arquitetura de responsabilidade municipal, coordenado pelo arquiteto Jorge Ramos de Carvalho. No início do século XXI é um dos espaços-âncora da atratividade cultural do Chiado.

A identificação toponímica formal dos arruamentos ocorre na segunda metade do século XIX, mantendo nomes anteriores como o Largo do Picadeiro, que perpetua a memória do antigo picadeiro ducal do desaparecido Palácio dos Duques de Bragança. Refletindo o espírito dos tempos, muitos dos nomes das ruas evocam figuras centrais da literatura romântica (Almeida Garrett) e da história contemporânea (Serpa Pinto, Capelo, Ivens, António Maria Cardoso). Para além destes nomes, que hoje dão nome à cidade, outras figuras da cultura portuguesa, como Alexandre Herculano, Eça de Queiroz, Bulhão Pato estão, naturalmente, ligados a esta época e figuram como pilares estruturantes da memória do Chiado e continuam, de algum modo, perpetuados, através das instituições culturais a que estiveram ligados. Estas instituições, persistem hoje como instituições culturais de referência, que mantém viva a tradição da tertúlia cultural. São exemplos marcantes o Grémio Literário, que abrigara os românticos e o Círculo Eça de Queiroz, que evoca a memória do escritor. Neste contexto, o já desaparecido Casino Lisbonense, que se localizava no atual Largo Rafael Bordalo Pinheiro, acolheu os defensores da estética do Realismo e do Naturalismo. No quadro das figuras e factos da história do Chiado, Eça de Queiroz e as conferências do Casino, realizadas em 1871, foram relevantes, na medida em que deram espaço à internacionalização e se tornaram um marco na vida cultural portuguesa.

No início do século XX, a movida cultural do Chiado, que congregava bairrismo e cosmopolitismo, contou com a intervenção dos modernistas do Grupo de Orfeu, com destaque para Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, Mário Sá-Carneiro e Fernando Pessoa, o poeta que nasceu no Chiado, ao Largo de São Carlos. A iluminação elétrica, introduzida em 1903, era um dos símbolos da modernidade desejada, que se fazia sentir através da influência literária e artística da cultura parisiense. Espaços de tertúlia como o Café A Brasileira do Chiado, aberto em 1905 e o Teatro da República, foram palco das encenações comportamentais das vanguardas e das provocações artísticas e culturais dos jovens futuristas. A criação do Museu de Arte Contemporânea, em 1911, no âmbito das iniciativas culturais da República, reforçou a presença das Belas Artes. A natureza e vocação deste espaço museológico estava intimamente ligada à tradição académica, onde se destacavam as opções estéticas do Romantismo e do Naturalismo, que vieram a constituir a base da coleção histórica do atual Museu do Chiado. Resistindo como santuário da modernidade artística, o café A Brasileira foi dotado de obras de pintura de diferentes gerações e linguagens artísticas. Mais uma vez, no mesmo tempo e por vezes nos mesmos lugares, o Chiado assistiu à coexistência e, algumas vezes, ao confronto, entre académicos e modernistas. O ambiente político conservador e a função repressiva da polícia política do Estado Novo, instalada no Chiado, na Rua António Maria Cardoso, provocaram a intervenção cívica de muitas instituições culturais, como o Centro Nacional de Cultura, fundado em 1945, que sobretudo a partir dos anos sessenta, se constituiu como território de resistência e inovação cultural e de mediação entre os criadores culturais portugueses e a cultura europeia.

Ancorada, persistentemente, nas livrarias e nas instituições culturais, a tradição cultural do Chiado, com forte pendor literário e artístico, foi-se mantendo, mas a função residencial e a dinâmica comercial que fazia parte da sua identidade urbana começou a alterar-se, desde os anos sessenta do século XX. Apesar da reinvenção de novos espaços de convivialidade de estudantes e figuras de referência do mundo das artes, como a Pastelaria Marques e a Leitaria Garrett, o Chiado acusava sinais de perda de vitalidade económica e demográfica, acompanhando as alterações urbanas, particularmente no centro histórico antigo. Em 1988, o incêndio que atingiu um grande número de edifícios, marcou a história do bairro e da cidade e foi pretexto para equacionar um programa de revitalização que promoveu a recuperação de funções comerciais e habitacionais e a modernização dos equipamentos culturais, com base num Plano da autoria do arquiteto Siza Vieira. A reorganização da antiga coleção do Museu de Arte Contemporânea e a sua instalação no espaço reabilitado pelo arquiteto francês Jean Michel Wilmotte vieram dar lugar ao Museu do Chiado, aberto em 1994 como um dos polos de referência da programação de Lisboa Capital Europeia da Cultura, ao mesmo tempo que o percurso urbano da 7.ª colina e a revitalização do Bairro Alto se refletiam positivamente no Chiado.

No início do século XXI, o Chiado reforçou o seu perfil de bairro cosmopolita e de espaço de tertúlia e centro cultural. A abertura do Café No Chiado, no local da antiga Livraria Morais, por iniciativa do Centro Nacional de Cultura, tal como a dinâmica cultural instalada no Grémio Literário são marcos deste processo de ressurgimento de locais de fruição e sociabilidade. A refuncionalização dos antigos Armazéns do Chiado, com atividades de hotelaria, restauração e comércio, onde se inclui um espaço dedicado ao livro e multimédia (a Livraria Fnac), em simultâneo com a reabilitação do Teatro Municipal São Luíz e do Teatro-Estúdio Mário Viegas e a reprogramação do Teatro de São Carlos e do Teatro da Trindade, contribuem hoje para uma ampla e diversificada oferta cultural. Palco de alguns eventos emblemáticos da cidade, com razão o Chiado é hoje conhecido como um dos principais “ponto de encontro” dos lisboetas e dos que visitam Lisboa.