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Exposições
Galeria Sá da Costa
Rua Serpa Pinto 19, 1200-443 Lisboa

SYNECDOCHE de HElena Valsecchi

Sinédoque é uma figura de estilo que consiste no emprego de uma palavra em vez de outra por via de uma relação de contiguidade entre elas como, por exemplo, a designação do todo pela parte ou da parte pelo todo, do plural pelo singular ou do singular pelo plural.

Tal qual a exposição atual de Helena Valsechi que consiste num enorme painel, intitulado justamente Synecdoche, que agrupa centenas de aguarelas de formatos muito diferenciados que se espraiam ao longo de uma parede, estabelecendo relações de continuidade e diferenciação entre si e de uma escultura intitulada “Vertigem”.

O desenho e a escultura são dois meios artíssticos centrais no trabalho de HElena Valsecchi (Novara, 1976), que lhe permitem explorar e experimentar formas, metodologias e temas estreitamente ligados à representação iconográfica e poética na pintura sobre papel e na escultura, através de uma relação acentuadamente mais física, mesmo na ausência de um corpo, ou perante corpos imaginários. A artista tem vindo a desenvolver uma pesquisa sobre questões metafísicas, marcadas por uma aura de espiritualidade que nos interroga sobre a nossa relação histórica com as representações da sacralidade, no sentido das questões paradoxais imanentes à própria vida, por um lado religiosa, enquanto espaço sagrado, mas por outro lado profana, mundana e secular. Sob este aspeto, e no contexto desta exposição, Valsecchi tem vindo a trabalhar numa obra que se relaciona, de um modo intenso, com a sua vida e integra uma outra ferramenta de cariz conceptual, a linguagem, na figura de estilo sinédoque.

“Synecdoche”, numa aproximação à palavra em língua grega, é o título da obra central da exposição, que integra também uma escultura de singular importância, e que pertence a este universo. A obra “Synecdoche” agrega uma grande complexidade de ações, espaços e gestos, podendo ser entendida como um work in progress, e como um projeto/estado de vida da artista. Valsecchi pensa esta obra como um processo quase diarístico, que será continuado no seu tempo de vida e se estriba numa esfera numinosa que atende a Rudolf Otto, autor central na pesquisa e no pensamento que a artista desenvolve.

A obra foi iniciada no final do ano de 2020, por ocasião da sua participação nas Residências Artísticas da RAMA, situadas na zona de Torres Vedras, fora do ambiente urbano, entre a paisagem florestal e agrícola. A deslocação para o campo criou condições para a artista desenvolver com mais intensidade e liberdade as suas caminhadas, meditações e trabalho de atelier, que coincidiu com o período mais confinado da pandemia, que todos atravessámos.

O trabalho a aguarela sobre papel demonstra uma excecional proficiência no domínio desta técnica, que permite representar figurações tão diversas, algumas delas mais ficcionais, por vezes abstractizantes, mas também objetos da memória coletiva que a artista procurou em dois museus situados na cidade de Torres Vedras, ou artefactos de proveniência muito diferente, como livros, obras de arte de todos os tempos e outras imagens, que transitam ainda da Itália. Todo este processo contribui para a criação do atlas visual que é de facto a “Synecdoche”, uma visão simultânea, e assim paradoxal, da parte e do todo, fragmentada em diversas geografias do imaginário espiritual e metafísico da condição humana, enquanto ato artístico e expressão da sua vida.

A obra apresenta uma paleta quase homogénea, tintada em subtis gradações que variam, por vezes, em tonalidades intensas, quase obscuras. A composição percorre-nos no momento da observação como se estivesse animada, em folhas de diferentes formatos, e expressa uma variação de planos que não é sujeita a qualquer hierarquia formal ou temática, transmitindo um pathos de proximidade tão próprio da matéria da pintura. A perceção do espectador é reconfigurada em cada momento, sob um itinerário imagético sem princípio nem fim, como de certo modo também ocorre em obras de Christian Boltanski, onde a composição expressa uma referência à religiosidade na arte sob a forma de painéis de imagens seccionados ou fragmentados, ou mesmo rememorando Mnemosyne, a incompleta obra de Aby Warburg.

Mas todo este pensamento sobre a totalidade e a parte na obra está intimamente relacionado com uma lógica de jogo, de troca de culturas e referências de épocas históricas. No período do confinamento, Valsecchi desdobra, se assim se pode dizer, o formato da obra para uma plataforma digital, disponibilizando cada uma das imagens através de um open call para que qualquer pessoa, de qualquer geografia do mundo, possa contribuir com uma frase sobre a sua conceção do sagrado. A obra, agora em exposição, já integra no seu estado atual uma rede de relações e de partilhas humanas, constituindo-se como uma representação metafórica de uma hierofania. Regressamos aqui a uma questão, inicial neste texto: a possibilidade da representação de uma referência ao espaço sagrado e simultaneamente da sua dessacralização, enquanto obra de arte que nos é coeva e nos confronta.

Este confronto transita da parede para o espaço do corpo do espectador, em presença da escultura intitulada “Vertigem”. Trata-se uma obra que apela a uma imaterialidade do espírito, no movimento que as cordas suspensas anunciam. Contudo, os nós de forca e o assento vítreo e quebradiço atribuem-lhe uma alegoria das pulsões, ou instintos da vida e da morte, numa aceção mais freudiana. A figura do baloiço acolhe uma multiplicidade de referências, do culto xamânico ao esplendor dionisíaco, no jogo do amor, na loucura ou na tragédia, como por exemplo no mito grego de Erígone, entre Eros e Tânato (ver por exemplo Raffaele K. Salinari, L’Altalena). O balanço, porventura vertiginoso, é uma impossibilidade ontológica que reside na sua materialidade enquanto objeto dado ao corpo, como escultura que demanda o desejo e como ícone nas suas referências históricas e mitológicas. “Vertigem” é uma obra que convoca em nós uma tensão interior, metafísica, volátil e dialógica, no sentido de nos propor uma miríade de questões interpretativas sobre a realidade intangível dos sentimentos e da morte.

HElena Valsecchi
Artista italiana e portuguesa, HElena Valsecchi nasceu em Novara, Itália, em 1976. Atualmente vive e trabalha entre Lisboa e Peniche, Portugal.

Por meio de uma reflexão sobre a pintura, vista numa perspetiva mais ampla e incluindo a instalação pictórica e, nela, fenómenos físicos como sombras e reflexos, HElena Valsecchi investiga as dimensões da vida/morte/sagrado/memória através da retórica do duplo, e da sua experiência no contexto contemporâneo.

Desde 2015, expõe regularmente em Portugal e no estrangeiro, tendo participado em várias residências artísticas.

Bolseira Carmona e Costa / Sá da Costa / MArt do programa de Residências Artísticas da MArt 2019–2020.

Desde 2020, colabora com a RAMA – Residências Artísticas da Maceira e Alfeiria, Torres Vedras.

WEBSITE: helenavalsecchi.com